A inquietante estranheza no corpo

Claudine  Vacheret
Claudia  Finkelstein
Cristina Satie Hirashima
José Atílio Bombana
Ricardo Almeida Prado

 

Em A pele que habito, o mais recente filme de Pedro Almodóvar, a esposa do cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Bandeiras) sofre um pavoroso acidente de carro enquanto foge com seu amante. Impassível ante sua traição, Robert inicia uma obstinada tentativa de salvá-la das horríveis queimaduras, tornando-se uma referência na descoberta de métodos inusitados de transplante de pele sem, no entanto, se importar em expor sua filha a um terror indizível e psicotizante. A esposa morre, a filha se mata, mas ele segue aferrado ao próprio desejo, cego ao desejo do outro, em uma busca obsessiva por técnicas transgênicas de pele humana em laboratório, que quiçá pudessem ter salvado sua esposa.


Se entendermos, como sugere Anzieu, a pele como um envelope que diferencia o dentro e o fora do sujeito, contornando os limites entre o eu e o outro, ao mesmo tempo que realiza a comunicação entre o sujeito e o ambiente que o circunda, podemos pensar que o cirurgião almodovariano não reconhece o outro enquanto alteridade, com desejos próprios e uma pele própria, insistindo em trocar a pele do outro por aquela mais conveniente a seus desejos. É o que constatamos quando, ao longo do filme Robert usa um rapaz como cobaia, transformando sua pele e seu corpo em um corpo de mulher, cópia fiel de sua esposa falecida. O limite de seu desejo autoritário só encontrará limites no desejo do rapaz, que, através da arte – uma espécie de pintura que desenha na parede de seu enclausuramento – consegue se manter são e preservar sua identidade.


Numa espécie de Pigmaleão moderno, ou, como mencionado por muitos críticos, um Frankenstein, Almodóvar passa seu recado: o desejo não é transgênico, a não ser que o sujeito desejante assim o queira. Podemos acrescentar que a composição corpo/psique humana tem nos revelado ser mais complexa do que nossas teorias podem abarcar. Ao lado de avanços da medicina ou de seus excessos como os denunciados por Almodóvar, a mídia tem anunciado com regular frequência dados epidemiológicos que apontam para o aumento de morbidades, como o câncer, a diabetes, alergias e a hipertensão nas diversas faixas etárias da população, fenômenos geralmente relacionados a fatores como aumento do estresse, obesidade e consumo de alimentos industrializados.


Considerando a via visceral como uma das três vias de canalização das pulsões – além da via motora e da psíquica (Dejours) – o corpo tem sido cada vez mais exigido enquanto palco das experiências e vivências pulsionais. Um corpo que tanto por sua aparência como por sua saúde se encontra permanentemente aquém de uma idealizada norma cultural, o que o torna fonte de sofrimento, dor e ameaça de morte do Eu.


Ao lado disso, não tem sido difícil constatar a transformação de antigos espaços sociais e culturais que, antes dedicados a canalizar, organizar e integrar as pulsões, tornaram-se – pelo excesso ou pela falta – promotores de experiências traumáticas que podem se constituir em formas de desconstrução da subjetividade. Subjetividade que, pelas palavras de Silvia Bleichmar, está sob o domínio de um desenvolvimento tecnológico que estimula o gozo, conduz ao fracasso das instâncias inibidoras e facilita o exercício da pulsão de morte.


Sem um espaço social/cultural intermediador das pulsões, desligada do psiquismo, a pulsão corre solta pelo corpo através das vísceras e da ação motora voluntária. Como terapeutas convocados a esta escuta, parece-nos difícil realizar um trabalho de ligação psíquica de tamanha violência imposta ao corpo, quiçá uma pretensão fruto da ilusão de domínio da representação psíquica sobre o real corporal e social.


No intuito de abrir um debate que amplie as discussões sobre a clínica atual, e tomando como fio de orientação o tema acima, a sessão Debates da Revista Percurso convidou colegas com diferentes referenciais clínicos para responder às questões a seguir:


Ainda que haja formulações teóricas que considerem o corpo via fundamental para certas apreensões e manifestações do inconsciente, quais novas técnicas têm sido adotadas para a prática clínica? Como construir um espaço de análise mais criativo, que possa compor uma pele permeável, não vulnerável à imposição do desejo do outro, constitutiva de um sujeito desejante?

CLAUDINE VACHERET E CLAUDIA FINKELSTEIN No filme citado, observamos um jovem com um aparato psíquico complexo quanto a suas experiências no tornar-se homem. O cirurgião tenta forçá-lo e impõe-lhe uma nova pele externa de mulher, sendo que a pele interna sobrevive sofrendo e permanece sujeita a essa violência secundária (P. Aulagnier). O corpo do jovem (o que se vê) é usado segundo um desejo louco do cirurgião para uma transformação que tenta devastar seu interior: foi vestido com uma pele de mulher enquanto sua mente luta para manter-se homem. O cirurgião toma o corpo do jovem como próprio, desconsiderando sua alteridade. Dois desejos opostos, onde um se impõe por um excesso violento ao outro. A devastação sofrida por esta pele exterior diferencia-se da que acontece aos pacientes psicossomáticos na pele interior, sobre seu aparato psíquico em formação e que se expressa através do corpo, uma vez que sua capacidade simbólica é mal constituída e frágil.
Os pacientes psicossomáticos são pessoas para quem o tema da separação é conflitivo, sendo que a memória das emoções e dores relacionadas à diferenciação é registrada e expressa através do corpo.

Em geral os pais de pacientes psicossomáticos necessitam, ao mesmo tempo, de uma intensa proximidade corporal e de uma demasiada distância afetiva (J. McDougall). Transmitem ao filho mensagens bruscamente antagonizadas: te amo, te rejeito. Os pais usam o corpo como um escudo frente ao excesso do outro ou como uma barreira para não diluir-se.

Pensamos que a técnica de grupo psicoterápico que utiliza fotografias como objeto mediador – Fotolinguagem® – seja útil para tratar pacientes com essas características uma vez que propicia essa distância. Pela fotografia pode-se chegar a uma distância ótima (C. Vacheret) através do ensaio-erro, uma distância que não signifique nem intrusão, nem abandono.

Para J. Puget, o efeito da presença da subjetividade do outro se impõe ao psiquismo. Em um trabalho de grupo trabalhamos permanentemente com o processo psíquico do outro, seja dos companheiros do grupo seja do terapeuta, como se estivéssemos em uma oficina de reparações e criações.

Um grupo terapêutico serve para estimular o trabalho do pré-consciente em conjunto, para gerar um espaço criativo que permita a formação de uma pele permeável que contenha um intercâmbio simétrico suficiente para que a vontade do outro não seja imposição e permita a construção de uma subjetividade desejante própria.
Ilustremos com uma vinheta clínica. O terapeuta oferece aos membros do grupo fotos e pede para que cada um escolha uma que responda à pergunta sobre o que é dependência para si. Uma das integrantes escolhe o balanço com pregos (figura ao lado) e diz que ela representa sua dependência afetiva interna. Os pregos marcaram sua infância. Quando menina era dependente, vivia solicitando o afeto dos outros, que a colocavam no balanço e a deixavam. Mendigava amor, e agora repete o mesmo com seu marido. Tal revelação desperta comentários de outros integrantes: um deles diz que vê muito sofrimento nesse balanço e outro comenta que o que deveria ser prazeroso é uma tortura, já que os balanços são para brincar.

Esses pacientes foram expostos a uma violência secundária desde a formação de seu aparato psíquico, com superposições de situações de vida e morte simultâneas que os paralisam e congelam afetivamente. O encontro e a separação não são vivenciados como transitórios e reversíveis, mas como definitivos (para sempre). A ruptura rouba suas forças. Em suas falas, em vez de “eu sou”, eles dizem “eu era com o outro”. Necessitam estabelecer uma barreira de contato que possa frear o excesso do outro, para que não os atravesse. A terapia tenta criar esse intermediário que permita que se constituam como sujeitos ativos e desejantes.

Seu mundo interno é maniqueísta, branco ou preto, apresentam poucos traços mnêmicos de amparo materno que coexistem com memórias de desamparo esmagadoras. Não há uma discriminação completa entre o eu e o outro. A fala do outro é filtrada por uma barreira de paraexcitações frágil: não podem dizer “isto é do outro” e não o tomam como próprio.

Geralmente foram crianças cujos cuidados maternos aconteceram de forma operatória (P. Marty) e desafetada. Sentem culpa por diferenciar-se do modelo familiar, uma vez que a diferenciação é vivida como traição. Deveriam poder confiar numa reciprocidade entre os vínculos, mas o que se observa são vínculos que permaneceram fixados na assimetria equivalente à assimetria entre pais e filhos.

“Como ser dependentes e manter, ao mesmo tempo, uma autonomia saudável?”

Muitas vezes, os pais são violentos e não podem enxergar quando seus filhos tentam se tornar visíveis através do corpo. Uma parte desta violência é rejeitada pelos filhos, outra transforma-se em identificações que atuam como uma companhia substituta da ausência parental. O companheiro deste vazio pode ser uma asma, uma hipertensão, etc.

Muitos pacientes psicossomáticos dizem sentirem-se presos, como se estivessem “atrás das grades”, em um interior que parece incluí-los, mas os submete a uma vontade alheia, a um controle externo. Afirmam sentir a imposição de um outro que os torna dependentes. Descrevem a si mesmos como vulneráveis e com um crescente sentimento de fragilidade e impotência, sem confiança em seus próprios recursos. Permanecem dentro dessa suposta dependência protetora. O outro não é visto como um par, mas como alguém forte, ideal, que sabe tudo. Desta forma, estabelece com o outro uma relação assimétrica que lembra o narcisismo primário, ao contrário de um sujeito que toma decisões, que se sustenta em si próprio e realiza trocas com o outro. Que constrói um lugar próprio, ainda que o outro não o ceda; que luta pelo seu nicho, como descreveu K. Lorenz.

O grupo de mediação de Fotolinguagemabre uma oportunidade de troca e desprendimento dessas histórias. A cadeia associativa grupal permite alinhavar as lembranças e experiências traumáticas que o pré-consciente não estava em condições de favorecer, o que complexifica e enriquece o aparelho psíquico.

CRISTINA SATIE HIRASHIMA Gostaria de agradecer o convite para participar deste debate possibilitando o enriquecimento da clínica de cada especialidade, a partir da comunicação, reflexão e da troca de experiências entre todos os participantes.

No filme citado, Vicente é um jovem que foi sequestrado pelo cirurgião plástico Robert Ledgard e submetido, sem o seu consentimento, a uma transformação corporal violenta onde ele se torna uma mulher. Ainda no filme, o cirurgião plástico explica que sua técnica inclui a “necessidade de moldar os músculos”.
Em minha prática clínica, trato de pacientes que, ao longo de suas vidas, tiveram suas posturas corporais moldadas de acordo com a própria história. Tensões, retrações musculares, bloqueio respiratório e outras influências naturais/fisiológicas entram em ação, na maioria das vezes inconscientemente, para atender ao desejo do outro, para se proteger ou, não obstante, para sobreviver.

Trata-se, por exemplo, de uma segunda pele, constituída pelas tensões musculares, que impede o acesso às memórias registradas nos tecidos corporais, as quais nunca tiveram oportunidade de participar da história da pessoa. Elas permanecem ativas no inconsciente como uma matéria bruta sem poder se integrar ao movimento da construção do aparelho psicoafetivo e da personalidade.

Tais memórias podem ser boas ou traumáticas e, neste último caso, assim como o personagem Robert Ledgard, o indivíduo tentará controlar concretamente no corpo a dificuldade e muitas vezes a impossibilidade de viver sentimentos como a frustração, a impotência, o luto, a perda, a solidão.

Atualmente, vemos alguns recursos largamente utilizados que convocam o corpo como lugar de concretização do controle para suportar sofrimentos psíquicos. O número assustador de cirurgias plásticas realizadas, que Almodóvar denuncia em seu filme, corpos “sarados”, dietas absurdas para emagrecer, etc. aponta o esforço das pessoas para se encaixarem em um padrão corporal de “perfeição”, aproximando-se de um ideal imposto pelo consumo, subentendido pelo outro, mas infelizmente se distanciando do contato com seu verdadeiro Eu, com suas dores e prazeres.

O personagem Vicente, transformado em Vera, sobrevive a uma brutal invasão do Eu utilizando alguns recursos: a arte, a escrita e a prática de ioga. Certo dia, ele assiste a um programa de televisão, no qual uma professora de ioga esclarece que a prática poderia ser feita em qualquer lugar, inclusive em uma prisão, pois a concentração em si mesmo levaria o aluno a acessar um lugar interno, aonde ninguém chegaria.

No filme, a fala da professora de ioga me é extremamente familiar. Em minha experiência clínica, o corpo é a via principal de acesso ao indivíduo como um todo. Constato que, através de toques, trabalhos posturais, respiratórios, massagens, vivências de consciência corporal e uma escuta profunda, é possível ter acesso às camadas mais inconscientes através da memória impressa no corpo.

Apesar de a pele, os músculos, as vísceras e os ossos sofrerem sob a tirania do controle, da pressão ou violência de situações impostas ao longo da vida, é possível existir um Eu vulnerável ou mesmo em vias de se constituir, no caso de o indivíduo ter vivido falhas em uma fase bem arcaica de sua vida. Como poderíamos então socorrer estes pacientes?

O quadro da Terapia Morfoanalítica cria condições para que o vivido corporalmente possa encontrar afetos e palavras que traduzam, deem sentido e organizem o sintoma conectado ao corpo sensível que “fala”. Através das sensações corporais, abre-se um acesso a imagens, lembranças, pensamentos e sentimentos. Trata-se de um trabalho de ligação do corpo com a psique através do afeto.

Mesmo que o terreno/corpo seja praticamente um deserto sensorial, a estimulação da capacidade de sentir o próprio corpo possibilita um retorno às experiências que constituem as bases da organização do aparelho psíquico. Estamos trabalhando à semelhança dos cuidados corporais maternos que propiciam aos bebês as primeiras experiências sensoriais (toque na pele, audição, olfato) que organizam as bases da constituição do aparelho psicoafetivo. Portanto, o retorno ao contato com o corpo é um resgate dessas bases estruturais físicas e psíquicas.

“A pele que habito” me remete a sessões com meus pacientes em que utilizo a metáfora corpo/casa: o corpo que cada um habita. Quando visito pela primeira vez a casa de um desconhecido, peço permissão para entrar e observo respeitosamente aquela morada. O mesmo ocorre quando toco o corpo de um paciente. Peço permissão dizendo, por exemplo: “Posso tocar na região abdominal?” ou “Posso tocar nos seus ombros?”.

Já visitei muitas casas. Casas luxuosas, mas sem moradores; casas totalmente desorganizadas, mas com uma plantinha muito verde e viçosa escondida em um canto; casas muito frias sem qualquer proteção contra chuva, vento ou neve.

A pele da palma de minha mão em contato com a pele do paciente me coloca em comunicação direta com as sensações vindas de seu corpo. Às vezes o paciente me diz: “Estou relaxado, tranquilo”. No entanto, sinto, através do toque, que a musculatura se contrai e encontro uma barreira na pele. É o reconhecimento desse campo/espaço do paciente que permite que o verdadeiro Eu seja visto (sinto a barreira no toque), valorizado, respeitado e sinta minha presença que o acompanha.

O que o paciente fala de seu corpo pertence à relação terapêutica que se organiza através da pele. Como terapeuta, estou ao mesmo tempo no campo sensorial e relacional. Escuto e sinto nas mãos através do filtro da relação transferencial. Toco-os ao longo da cadeia muscular posterior, chamando a atenção para cada parte que vai sendo tocada. É um trabalho de consciência corporal, em que realizo o inventário das zonas de tensão muscular no corpo objetivo, na tentativa de que a cada toque o paciente possa entrar em contato com a memória psicoafetiva de tais regiões. Ao lado disso há um trabalho de associações seja a partir de lembranças ou sonhos.

É assim que as sessões vão se aprofundando até o paciente acessar camadas mais arcaicas de um sofrimento até então inconsciente, mas registrado na pele, nos músculos, nos ossos, nas vísceras, ou seja, em todos os tecidos que constituem o corpo real. Quando percebo que a intensidade da emoção precisa de um acompanhamento corporal mais ativo, com mais corpo e mais estimulação da pele, sigo um trabalho de contenção física e psíquica tocando com as minhas mãos de forma muito presente, envolvente e delicada em várias partes do seu corpo, como por exemplo: cabeça, ombros, costelas, a base do pescoço, região abdominal. Cada paciente é singular neste trajeto.

Muitas vezes, falhas e/ou traumas vividos em uma época muito precoce do desenvolvimento deixam buracos no envelope de pele do indivíduo, sendo necessário costurar pedaços de pele para manter sua integridade. É o que o personagem do cirurgião plástico tenta desesperadamente fazer: consertar os buracos de sua pele psíquica. Ao transformar o jovem Vicente em uma mulher idêntica à sua esposa morta, ele tenta recuperar o objeto de amor perdido com o qual provavelmente vivia em uma relação simbiótica, na qual ele se fundia com ela. O ato concreto de costurar o outro foi uma forma desesperada que o cirurgião encontrou de salvar a própria pele.

Estamos trabalhando a partir de um quadro corporal que se assemelha em muitos aspectos aos cuidados maternos primários, com a intenção de constituir ou reconstruir um envelope de pele original e único, dotado ao mesmo tempo de sensibilidade e proteção, ou seja, uma pele permeável e segura onde o sujeito que a habita possa viver uma relação justa consigo mesmo, sentindo-se bem na própria pele.

JOSÉ ATÍLIO BOMBANA E RICARDO ALMEIDA PRADO
O corpo convocado (do paciente, do analista, da instituição)
O texto proposto pela Revista Percurso contempla inúmeras questões entrelaçadas. Um modo de formulá-las seria pensar se existiriam novas alternativas na clínica que pudessem dar conta do complexo contexto atual que resulta numa exposição do corpo a delicadas e perigosas vicissitudes. Contexto esse problematizado pelo filme de Almodóvar, com seu questionamento da perigosa associação entre as alternativas quase sem limites da tecnologia e psiquismos sem instâncias interditoras, confrontando-se com o aparentemente frágil desejo do Outro. Já pelo lado do social, evidencia-se uma falha em propiciar que os conflitos humanos da contemporaneidade encontrem espaços de possível elaboração, sem ter que recorrer a recursos mais primitivos. Nesse panorama em que surgem novas formas de subjetivação, o corpo é cada vez mais chamado a protagonizar papéis próprios e também outros substitutivos de falhas simbólicas deixadas por um tempo que apresenta dilemas particulares, sem, entretanto, fornecer os meios propícios à sua solução.

A questão formulada engloba aspectos presentes em boa parte das análises (“constituição de uma pele permeável, não vulnerável à imposição do desejo do outro, constitutiva de um sujeito desejante”), como também apresenta questionamentos próprios da época atual (fenômenos clínicos da contemporaneidade).

Entendemos este convite da Percurso a nós dois em conjunto como uma indagação dirigida a psicanalistas de uma instituição universitária pública (Unifesp), na qual desenvolvemos um trabalho junto a pacientes que somatizam.
Ao se falar das tendências atuais da perda de instâncias mediadoras e das características do pós-moderno como o pano de fundo do crescente papel do corpo na clínica, questiona-se o que poderia haver de novo em termos de recursos terapêuticos. Antes, porém, somos levados a considerar os aportes que já fazem parte da abordagem analítica, e, portanto, sempre que oportunos, parte do instrumental do analista. Nesta vertente, pode-se considerar que, no contexto evocado, o corpo convocado do paciente convoca o corpo do analista (e também o corpo de uma possível instituição).

Assim, no trabalho clínico, como se está atento às vivências psíquicas despertadas em nós durante as sessões e procura-se discernir aquelas de ordem pessoal das que emergem do trabalho de análise, nossas sensações físicas também devem ser detectadas nas situações de análise de um modo geral, mas de modo privilegiado quando se trata de pacientes caracteristicamente somatizadores. Como lembra Leal (2000), “O corpo do analista é utilizado como palco para as expressões do mundo subjetivo do analisando”.

Por outro lado, considerando as possibilidades da interpretação na transferência, os aspectos e vivências transferenciais serão atentamente observados, levados em conta e produzirão efeitos, mas não necessariamente serão interpretados direta e verbalmente. Ainda se pode mencionar o papel da função do analista enquanto suporte para as transferências de seus pacientes. Na clínica da somatização, essa necessidade se faz presente incluindo tanto a psique como o corpo do analista.

Podemos pensar também sobre a importância dos afetos – elemento este essencialmente psicossomático – nesta clínica, que, solto, desligado de representações, demanda do analista todo um trabalho de nomeação que passa pela apreensão dos afetos do paciente, a partir também de suas ressonâncias somatopsíquicas ocorridas no analista.

Por outro lado justificam-se as tentativas de inovação, pressionadas pela realidade clínica contemporânea que todos nós experimentamos, e cujo crescimento é sugerido pelos dados epidemiológicos.

Primeiramente, levando-se em conta o recurso grupal destes dispositivos terapêuticos, Käes (2004) ressalta que “essas novas situações psicanalíticas pluripessoais ‘fora da análise clássica’ foram propostas para tratar de sofrimentos psíquicos e de patologias caracterizadas essencialmente por distúrbios na constituição dos limites internos e externos do aparelho psíquico. […] Em todos esses distúrbios patológicos, estáveis ou transitórios, a base do narcisismo primário, os processos de figuração do originário e da simbolização primária dependem constante e estreitamente da estrutura e da qualidade dos vínculos precoces. Hoje sabemos que esses processos e essas formações intrapsíquicas só podem constituir-se em suas articulações suficientemente confiáveis com os processos e as formações que se desenvolvem nos espaços interpsíquicos”. Portanto os tratamentos pluripsíquicos (grupais, de família) têm se mostrado meio privilegiado na abordagem destas novas subjetivações que poderíamos caracterizar como patologias do vínculo. Tais configurações psíquicas contam com uma precariedade de funcionamento do pré-consciente – instância psíquica esta denominada por Freud de aparelho de significar-interpretar -, seja por uma pobreza representacional, seja por um impedimento na tramitação e disponibilidade destas representações psíquicas.

Ainda segundo Käes (2004; 2011), o processo associativo grupal estimularia o desenvolvimento e o funcionamento pré-consciente dos indivíduos participantes do grupo, colaborando intensamente com o aumento da capacidade associativa individual e por conseguinte numa maior capacidade de simbolização. Em nosso serviço, temos lançado mão de grupos terapêuticos e psicoterapia de família.

Apontamos para o papel crescente que tem tido a utilização de recursos artísticos (ou apoiados na arte) nos settings terapêuticos. Entre nós temos acompanhado propostas terapêuticas que utilizam fotografias (grupo de fotolinguagem) e trechos de filmes (grupo chamado “Oficine”) que operam como objetos mediadores, possibilitando um caminho das vivências brutas e pouco representáveis para um funcionamento psíquico que inclua o simbólico, com resultados animadores.

A própria atividade imaginativa sobre o objeto mediador pode ser transformadora sem que os pacientes falem diretamente sobre sua história ou experiências pessoais, e sem que o analista faça qualquer referência a isso, ainda que ele pense em alguma ligação desse tipo. Assim, ocorre a mudança das sensações em sentimentos, representações e pensamento, no decorrer do cumprimento da tarefa e na própria organização do trabalho grupal, sem que nenhuma interpretação direta e pessoal precise ser dita.

O grupo de trabalho conta ainda com uma morfoanalista (que também participa deste debate) que desenvolve um trabalho basicamente de abordagem corporal.

E em se mencionando o filme “A pele que habito”, também lembramos uma nova proposta que temos implementado ao iniciar atendimentos com crianças e adolescentes com quadros dermatológicos (vitiligo, psoríase, alopecia, etc.) numa parceria com o departamento de Dermatologia. Esta experiência, juntamente com outro trabalho grupal destinado a pacientes adultos que somatizam, mas numa configuração clínica sem características de cronificação (grupo de somatizadores não crônicos), marca a possibilidade de “ações preventivas” neste contexto, abrindo estimulantes perspectivas.

Desafios novos requerem por vezes abordagens novas, e aí não há como abrir mão da necessidade de respostas criativas. Na aliança entre a tradição (no que ela tem de já sedimentado) e a criatividade, estaria uma boa aposta.
Ainda enquanto experiência institucional, buscamos, nessa clínica, evitar os perigos provindos das divisões que costumam ocorrer nas instituições, como já alertava Winnicott. Pacientes com importantes divisões internas exploram e são explorados pelas cisões próprias de grandes e complexas instituições. Esses pacientes correm sempre o risco de serem “retalhados” e enviados para os inúmeros departamentos médicos.

De dentro da universidade, assistimos aos “avanços da ciência” possibilitando uma crescente multiplicação de fármacos, acenando com o controle das mazelas humanas (o caso dos antidepressivos é paradigmático). Estes, embora por vezes representem progressos desejáveis, chegam ao mercado como promessas de novas e efetivas curas. A clínica psicossomática nos mostra o quanto de engodo pode haver nessa proposta, incentivada pela indústria farmacêutica.

Essa “clínica do corpo”, com a persistência de seus sintomas somáticos, ainda nos alerta para que evitemos repetir o personagem de Antonio Bandeiras, o Dr. Robert Ledgard, e possamos suportar os limites dos pacientes e de nossas intervenções terapêuticas. A tolerância à frustração coloca-se como um requisito indispensável aos analistas que se lançam por esses mares turbulentos.

RUBENS MARCELO VOLICH Clínica psicanalítica: desafios, impasses, superações
Vivemos as fantasias de Almodóvar. As personagens bizarras, as paixões, a violência, os arranjos incômodos, subversivos e provocadores de seus filmes nada mais são do que uma figuração de subjetividades de nosso tempo, imagens caricatas de nossas vidas, de partes de nós mesmos que, muitas vezes, resistimos obstinadamente a reconhecer.

A subjetividades como essas, complexas, fragmentadas, primitivas em suas manifestações, a clínica psicanalítica vem sendo cada vez mais confrontada. Subjetividades muito distintas daquelas reveladas por Freud, estas, marcadas por recalcamentos, denegações, deslocamentos, projeções, condensações e toda uma miríade de dinâmicas psíquicas presentes nas formações neuróticas, perversas e psicóticas e tantas outras psicopatologias da vida cotidiana (sonhos, lapsos, fantasias…), para as quais ele concebeu o processo psicanalítico.
Já há muito tempo, a clínica psicanalítica é desafiada por formas mais desorganizadas de expressão do sofrimento humano. Não apenas por manifestações corporais, mas também, por manifestações narcísicas, onipotentes e indiferenciadas do ego ideal, pelo imperativo do gozo e pela tirania do superego, formações primitivas que impedem a organização do recalcamento, o reconhecimento da alteridade e da castração e que tornam o sujeito dependente e cativo do desejo do outro, impermeável à transferência e à interpretação. Dinâmicas que resultam na precariedade de recursos psíquicos, fantasmáticos, oníricos e relacionais do sujeito, que limitam as possibilidades de ligação pulsional às atuações pelo comportamento e às desorganizações somáticas, muitas vezes graves e mortíferas.

Dinâmicas refratárias ao trabalho livre associativo e à atenção flutuante, que aniquilam ou desfiguram o desejo e a demanda, dificilmente acessíveis ao trabalho de figuração, ao discurso e aos enquadres clássicos de uma análise. Dinâmicas que se manifestam pelo vazio e pelo desamparo, pelo simulacro e pela hiperadaptação, pelas formações extremas da culpa, da autodepreciação e da violência dirigidas contra si mesmo, nos quadros melancólicos, nas anorexias, nas adicções, na sintomatologia somática e nas automutilações corporais, nos comportamentos de risco, no suicídio, mas também na destrutividade dirigida contra o outro e contra o grupo, como o assassinato, o vandalismo, a violência social. Destrutividade que se infiltra nas clássicas configurações psicopatológicas, esfacelando os limites da nosografia, dificultando o diagnóstico, as condutas terapêuticas e a adesão aos tratamentos, introduzindo a confusão e neutralizando o arsenal farmacológico e os diferentes recursos clínicos.

Muito cedo, evidenciaram-se os limites da técnica psicanalítica clássica (divã, transferência, associação livre às formações do inconsciente, abstinência do analista, frustração do paciente…) para o tratamento de inúmeras manifestações, desde as neuroses atuais, as doenças orgânicas, as psicoses, as psicopatias, as toxicomanias, transtornos alimentares, os casos limites e muitas outras, resultantes de dinâmicas bastante distintas e mais primitivas que as dos mecanismos neuróticos. O próprio Freud apontou os limites de sua técnica – concebida para o tratamento das psiconeuroses (histeria, neurose obsessiva, fobia) cujos sintomas comportam um sentido simbólico e representativo -, para o tratamento das neuroses atuais (neurose de angústia, neurastenia e hipocondria) e outras manifestações nas quais a descarga pulsional se dá diretamente pelas vias corporais, com pouca ou nenhuma derivação ou elaboração mental da excitação.

Porém, desde os primeiros tempos da psicanálise, muitos enfrentaram esses desafios, buscando formas de viabilizar a clínica psicanalítica de tais pacientes. Nos anos 1910 e 1920, Ferenczi foi um dos primeiros a insistir na importância do referencial teórico da psicanálise para a apreensão da experiência subjetiva e para o acompanhamento clínico dos pacientes com neuroses atuais e doenças orgânicas. Ele defendia essa possibilidade a partir de uma mudança na postura e na escuta do analista e de modificações no dispositivo clínico para lidar com traumatismos e dimensões mais primitivas, pré-verbais e corporais, do funcionamento desses pacientes. Ele propunha também a sensibilização dos médicos para as vivências psíquicas de seus pacientes, a serem utilizadas junto com outros recursos da medicina. Por esses caminhos enveredaram todos os pioneiros da psicossomática, entre os quais Groddeck, Felix Deutsch, Franz Alexander, Ballint, inspirados e pautados pela psicanálise.

Na esteira desses pioneiros (e de muitos outros como W. Reich, M. Klein, R. Spitz, D. Winnicott, P. Marty, L. Kreisler, Ch. Dejpurs, P. Fédida, A. Green, J. McDougall, M. Aisenstein) desenvolveram-se vertentes teórico-clínicas que, ampliando a compreensão da metapsicologia e os recursos clínicos da psicanálise, oferecem possibilidades de tratamento não apenas para pacientes que apresentam uma sintomatologia orgânica, mas também para psicóticos, borderlines, adictos e com transtornos de caráter e alimentares, ou seja, para aqueles que vivem os efeitos da precariedade de suas vivências infantis e de seu desenvolvimento, do esgarçamento de seu tecido psíquico representativo, de suas fragilidades narcísicas, da carência, das deficiências do recalcamento, das instâncias psíquicas e da organização edípica, da pobreza de seu mundo objetal.

Dessa ampliação surgiram a psicossomática psicanalítica, o psicodrama e o relaxamento psicanalíticos, da mesma forma como surgiram outros dispositivos clínicos mais conhecidos, como a ludoterapia, a arteterapia, as terapias conjuntas mãe-bebê, as terapias familiares, de grupo e corporais, todos com o intuito de lidar com os impasses encontrados pela clínica psicanalítica.

Apesar das grandes diferenças entre as manifestações mais desorganizadas e aquelas das psiconeuroses, a clínica revela a continuidade funcional e a gradação de modos de organização entre esses quadros, do ponto de vista do desenvolvimento humano e no da manifestação patológica.

Mesmo no curso de uma psicanálise clássica de um neurótico, é possível observar, em alguns períodos, a retração transferencial, a rarefação da associação livre, dos sonhos e da atividade fantasmática, que correspondem a momentos mais ou menos prolongados de desorganizações da economia psicossomática, precedendo ou acompanhando o surgimento de sintomas ou doenças orgânicas e atuações, como tive oportunidade de relatar no caso de Sofia .

A partir de casos como esse e de pacientes mais desorganizados, como Jean , é possível compreender a importância do manejo do enquadre, da escuta e a especificidade do trabalho da contratransferência para acompanhar as oscilações evolutivas e contraevolutivas do funcionamento psicossomático, que tornam possível a clínica psicanalítica dos pacientes mais desorganizados.

Nesses casos, em particular, o espaço terapêutico precisa constituir-se como depositário das experiências corporais, perceptivas, sensoriais e motoras mais primitivas, para que, por meio da relação com o terapeuta, muito lentamente, elas possam adquirir densidade representativa através de um trabalho ativo de figuração. Na contratransferência, as sensações corporais do analista se prestam à ressonância das vivências primitivas do paciente, que não podem ser verbalizadas, e são um importante recurso para a apreensão de dinâmicas pulsionais aquém da representação.

A posição regressiva e frustrante do divã, assim como o silêncio do analista, não apenas têm poucas chances de mobilizarem o trabalho do paciente, mas, inclusive, podem contribuir para sua desorganização. Daí a importância da posição face a face, a partir da qual o olhar, os gestos, as expressões faciais e os recursos verbais e não verbais são colocados a serviço da reanimação libidinal do paciente e do desenvolvimento das instâncias e dinâmicas psíquicas. A função materna e o holding buscam propiciar a reorganização narcísica e objetal, consolidando os recursos de ligação entre as pulsões de vida e de morte e os núcleos masoquistas erógenos primários, necessários para lidar com sofrimentos, perdas e frustrações.

A rarefação do material representativo, a inexistência de um terreno psíquico consistente, onde uma interpretação mais incisiva possa se ancorar, e a fragilidade do laço transferencial desaconselham interpretações mais profundas, de natureza pulsional, regressivas por constituírem um forte potencial desorganizador.

As atuações comportamentais, as expressões e sintomas corporais são meios pelos quais o paciente ainda tenta manifestar sua dor e seu afeto anestesiados. O analista é convocado a um encontro nos terrenos mais primitivos da existência do paciente, ao trabalho com os elementos mais brutos e fragmentados de sua experiência, única matéria-prima passível de investimento nas incipientes tramas relacionais da transferência. Um trabalho incerto, frustrante e difícil do qual, espera-se, possa também ser tecida uma pele psíquica, necessariamente permeável à alteridade, mas consistente e fértil para que germine e se desenvolva o desejo próprio do sujeito e seu mundo representativo.

Autor(es):
 
Claudine  Vacheret é médica pneumologistapela Universidade de Buenos Aires, psicoterapeuta pela AAPPG de Buenos Aires e doutoranda pela Universidade de Lyon II.
 
Claudia  Finkelstein é psicanalista, membro da API e professora da Universidade de Lyon II. 
 


José Atílio Bombana é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e doutor em Psiquiatria pela Universidade Federal de São Paulo (Escola Paulista de Medicina)


Ricardo Almeida Prado é psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, psiquiatra pela Unifesp e membro da equipe do paes – unifesp

Fonte:

http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=987&ori=debate

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